Saturday, January 2, 2010

Le Manoir du Diable



Georges Méliès teve a sua introdução ao trabalho com película ao assistir a uma demonstração do cinematógrafo dos irmãos Lumière, em 1895. Méliès, que até então trabalhara como ilusionista no Teatro Robert-Houdin em Paris, inicia um período marcante da história do cinema no qual realiza 531 filmes entre 1896 e 1914.
No seu estúdio em Montreil, Méliès aperfeiçoou ténicas como a exposição múltipla (permitindo que a mesma pessoa desempenhasse vários papéis na tela) e o corte colagem; encarando as técnica de filmagem e edição como a evolução natural do ilusionismo muitas das suas obras eram pouco mais do que uma demonstração de efeitos especiais, o que constituía algo verdadeiramente inovador na época.

Em 1896 realiza aquele que é tido como o primeiro filme de terror, Le Manoir du Diable, uma obra de apenas 2 minutos que retrata a invocação de demónios por parte de um morcego/Mefistófeles e a sua subsequente derrota por um cavaleiro armado de um crucifixo.

A sua obra prima surge em 1902, com Le Voyage dans la Lune. Com 9 minutos de duração, este filme engloba já uma visão séria da arte cinematográfica como obra narrativa, representando talvez se não a origem, um verdadeiro despertar, um começo de uma nova era.
A trama começa com um consórcio de cientistas debatendo uma viagem à lua no meio de grande confusão. É-nos mostrado então o período de construção do foguete com uma visita às fábricas e a inauguração e partida de um pequeno grupo de cientófilos.
Os planos relevam a maestria de Méliès na construção dos cenários. Muito antes de Eisenstein, a sobreposição da forma ao conteúdo é um elemento que marca a sua obra e, para bem ou para mal, toda a história subsequente do cinema, levando consigo a associação da inovação técnica à procura de novas formas de transmutação de imagem para quebrar as relações pré-estabelecidas entre autor e espectador. De facto, Méliès é elemento fundamental nessa transição da cinematografia como entretenimento “gadget” na sua evolução para reflexão artística.
Ilustrando a viagem espacial e alunagem Méliès cria a sua sequência mais famosa, e igualmente a sequência mais poderosa do cinema do período pré-Guerra. Começando por nos mostrar uma lua disforme (assemelhando-se a sua expressão facial de O Grito, Skrik, de Edvard Munch) que se aproxima num horizonte não muito distante (um uso interessante e inovador das leis da perspectiva, colocando o espectador a viajar de encontro à lua), vemos que a mesma adquire feições. Se nos olha primeiro de uma forma altiva e redutora, de sorriso sardónico e arcada supraciliar convergente, após ser atingida pelo foguete revela-se humilhada, incomodada, diríamos mesmo, derrotada. Este plano fantástico realiza o filme: a conquista do físico e do metafísico (a lua como esfinge) pelo Homem; um grande filme de época, tão coerente no contexto político que se desenrolou nos doze anos seguintes até ao deflagrar da 1ª Guerra.

A alunagem, vista novamente, desta vez em grande ampliação (há um óbvio anacronismo relativo ao tamanho do foguete), revela-nos primeiro um cenário maravilhosamente engendrado por Méliès retratando a Lua numa imagética que saiu directamente do fantástico, num traço de modernismo interessante. Crateras vulcânicas e torres líticas erguem-se em direcção aos céus criando um contexto surrealista que delicia os visitantes. Nesse primeiro dia observam a Terra da Lua e uma erupção explosiva. Ao deitar, seguem-se os fenómenos, com a observação de um cometa e da ursa maior, com cada uma das sete estrelas representadas por uma face humana, e ainda mais estrelas e planetas, ilustradas por divindades femininas e sobrenaturais.
Novamente se repete a humanização do natural, a interpretação humana dos fenómenos naturais. Mais do que a representação do pensamento da época, perpassa a ideia do absolutismo dos valores humanos aos quais as leis naturais se devem subjugar. Conjugando o natural e o sobrenatural e os valores comuns históricos com o conhecimento científico.
Finalmente ao segundo dia enquanto exploram uma caverna e observam um guarda-chuva levitar como reacção a uma rocha lunar, encontram um indígena. Estes são caracterizados como simióides (afinal, a raça terrestre mais próxima ao Homem) e prontamente “despachados” à bastonada. No entanto, a “troupe” humana é subjugada pelos grandes números da espécie residente e é apresentada em conferência ao seu líder. Com grandes lanças, máscaras e adornos ósseos, é óbvia a sua caracterização como uma tribo africana. Mais do que uma apreciação depreciativa e, novamente, há que contextualizar a situação histórica, evidencia-se o paralelismo entre a situação exposta, e o colonialismo (neste caso francês), do continente materno.
Um dos cientistas prontamente “desfaz” o seu líder e lidera a liberação. Enceta-se uma sequência de fuga em direcção ao foguete, que, com toda a agitação, “cai” de volta à Terra, aterrando no mar. Num dos planos em que se observa o reboque do foguete de volta a terra, a presença inequívoca de uma Lua cheia raiando o seu luar sobre as águas, mantém vivo o desejo de exploração, como uma jóia sempre presente que reluz, e seduz com o seu brilho os homens. É ainda um barco a vapor que reboca o foguete espacial, no que poderá ser uma alusão à sobreposição da tecnologia presente à tecnologia futura.
Os heróis são finalmente recebidos com pompa e circunstância, numa cerimónia similar à da sua partida.
Nesta obra observa-se uma grande inspiração não só no trabalho anterior de Méliès como mágico, mas ainda na literatura fantástica de Jules Vernes, seu conterrâneo e contemporâneo. Ainda que não tivesse arriscado uma odisseia lunar, o universo fantástico que Méliès criou nesta obra compraz-se muito com obras como Voyage aux Centre de La Terre e Île Mysterieuse.
Em 1913 a sua companhia entrou em falência perante a impossibilidade de competir com os grandes estúdios emergentes franceses e americanos. Méliès abandona a arte de fazer cinema e passa a vendedor de brinquedos na estação de Montparnasse. Muitos dos seus filmes perderam-se então durante e após a Primeira Guerra Mundial.
Morreu em Paris a 21 de Janeiro de 1938.